Preocupado em evitar uma forte retracção económica, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, contraria a orientação de epidemiologistas e tenta convencer a maioria dos brasileiros a abandonar a quarentena contra o novo vírus corona. Na sua avaliação, apenas os mais idosos e portadores de outras doenças deveriam ficar em casa.
Médicos e economistas críticos a essa proposta têm argumentado, no entanto, que essa estratégia levaria à rápida expansão da doença no Brasil — o que também provocaria danos à economia, além de um número maior de mortes.
Um estudo sobre os efeitos da epidemia de gripe espanhola sobre cidades americanas em 1918 indica que, pouco mais de menos um século atrás, medidas preventivas de isolamento social foram positivas não apenas para prevenir mortes, mas também amenizar o impacto da pandemia sobre a economia.
Medidas contra a pandemia de 1918 incluíram acções similares as que têm sido adoptadas hoje contra o novo vírus corona, como fechamento de escolas, teatros e igrejas
Ao analisar como se deu a recuperação económica em 43 cidades americanas após o fim do surto de gripe espanhola, seus autores concluíram que a actividade voltou a crescer mais rápido onde as autoridades municipais adoptaram medidas para conter a expansão da epidemia, em comparação com locais que não actuaram para reduzir o contágio.
A pesquisa publicada na última quinta-feira (26/03) é assinada pelos economistas Sérgio Correa, do Banco Central americano, Stephan Luck, do Banco Central de Nova York, e Emil Verner, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts.
Segundo os autores, diversas cidades americanas adoptaram, em 1918, estratégias de distanciamento social similares às que têm sido utilizadas hoje ao redor do mundo contra o vírus corona, como “fechamento de escolas, teatros e igrejas” e “a proibição de reuniões de massa”.
Além disso, também aplicaram outras acções como “uso obrigatório de máscara, isolamento de pessoas infectadas, tornar a gripe uma doença notificável e medidas públicas de desinfecção e higiene”.
A adopção dessas políticas contra a gripe espanhola, no entanto, não foi uniforme em todo país. “As autoridades da cidade de Filadélfia intervieram apenas muito tarde e até permitiram a realização de grandes reuniões públicas, como o Liberty Loan Parade (um desfile patriótico para angariar fundos para os esforços militares americanos na primeira Guerra Mundial), amplamente frequentado”, diz o estudo.
“Como consequência, Filadélfia teve um aumento considerável na mortalidade relacionada à gripe espanhola durante o outono de 1918. As autoridades da cidade de Saint Louis, por outro lado, intervieram rapidamente, e a taxa final de mortalidade foi substancialmente mais baixa.”
Ao comparar a forma como 43 cidades usaram essas medidas, os economistas notaram que acções preventivas precoces e com mais intensidade não agravaram a crise económica.
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Ao comparar a forma como 43 cidades usaram essas medidas, os economistas notaram que acções preventivas precoces e com mais intensidade não agravaram a crise económica.
“Pelo contrário, cidades que intervieram antes e mais agressivamente experimentam um aumento relativo do emprego na indústria, da produção industrial e dos activos bancários em 1919, após o fim da pandemia”, dizem os autores.
Para essa análise, foram cruzados dados como a duração das medidas adoptadas, as mortes por gripe espanhola registradas nestas cidades e seus indicadores económicos.
Acções preventivas adoptadas dez dias antes da chegada da doença contribuíram para um aumento de 5% no emprego industrial das cidades no período posterior à pandemia de 1918, por exemplo.
Da mesma forma, implementar essas medidas preventivas por mais 50 dias resultaram em um crescimento de 6,5% do emprego na indústria após o fim da pandemia.
Segundo os autores, medidas preventivas que restringem a interação social realmente deprimem a actividade económica. Mas eles ressaltam que a expansão da epidemia quando essas medidas não são adoptadas também impacta negativamente a economia, já que as famílias reduzem por conta própria seu consumo e trabalho para diminuir a possibilidade de contrair a doença.
“Assim, enquanto as medidas preventivas diminuem a actividade económica, elas (ao mesmo tempo) podem resolver problemas de coordenação associados ao combate à transmissão de doenças e mitigar a ruptura económica relacionada à pandemia”, observam os economistas.
Acções para reduzir a expansão da doença “podem reduzir a mortalidade e, ao mesmo tempo, serem economicamente benéficas”.
Os autores do estudo afirmam que “há lições importantes da gripe de 1918 para a pandemia actual da Covid-19”. Eles reconhecem, porém, que há alguns limites na comparação do contexto actual com o de um século atrás.
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Os autores do estudo afirmam que “há lições importantes da gripe de 1918 para a pandemia actual da Covid-19”. Eles reconhecem, porém, que há alguns limites na comparação do contexto actual com o de um século atrás.
Estimativas indicam que a taxa de mortalidade da gripe espanhola é maior que a da Covid-19, especialmente entre trabalhadores mais jovens, o que sugere que o impacto económico da pandemia de 1918 pode ter sido maior.
Além disso, elementos importantes da economia actual — como o avanço de tecnologias de comunicação, o crescimento do sector de serviços e a grande complexidade da cadeia mundial de fornecedores — não estavam presentes em 1918 e, por isso, não são capturados na análise económica da pandemia de gripe espanhola.
O pesquisador Marcelo Medeiros, professor visitante na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, também aponta limitações no estudo para entender a crise do vírus corona no Brasil, já que a economia do país de hoje é muito diferente da americana em 1918.
“Estamos a viver uma crise sem precedentes. Por isso, nada do passado serve de referência exata para o nosso futuro. A gente ainda sequer conhece os detalhes dessa epidemia, que pode progredir em várias direcções diferentes”, pondera.
Feita essa ressalta, Medeiros considera que devemos “prestar atenção no recado que o estudo dá”, em especial para analisar como diferentes países estarão posicionados para se recuperar após a pandemia.
“A Alemanha está a agir massivamente para combater a epidemia e os efeitos da recessão causada por ela (Covid-19). Está claramente com uma estratégia de avançar em posições na geopolítica global, no seu poder económico, saindo de uma crise em boas condições”, avalia.
“O país que tomar a decisão de se proteger bem agora, controlar a epidemia o máximo possível, vai ter uma vantagem em termos globais. Ao sair mais rápido e menos abalado da crise, vai entrar numa posição de vantagem na economia internacional”, afirma.
Medeiros cita como exemplo a Alemanha, que já anunciou medidas contra crise que somam mais de 30% do seu Produto Interno Bruto.
“A Alemanha está a agir massivamente para combater a epidemia e os efeitos da recessão causada por ela (Covid-19). Está claramente com uma estratégia de avançar em posições na geopolítica global, no seu poder económico, saindo de uma crise em boas condições”, avalia.
Para Medeiros, é um processo semelhante com o que ocorreu com os Estados Unidos após a segunda Guerra Mundial (1939-1945), conflito que devastou especialmente as potências europeias.
“Em alguma medida a gente já observou isso no passado. Foi o que aconteceu quando os Estados Unidos saíram da segunda Guerra sem destruição do seu capital físico. Eles se tornaram rapidamente a maior potência mundial”, compara.