Comparar os dias que vivemos com os episódios mais traumáticos do passado é muito tentador. As feridas daquele Setembro de 2008, quando o sector financeiro desmoronou, levando consigo a economia, ainda continuam tão perto no tempo e tão presentes no imaginário colectivo que é inevitável voltar a essa época.
Até o Banco Central Europeu (BCE), que vem chamando a atenção para que haja coordenação e se lance mão de artilharia pesada, recorreu a essa comparação para conscientizar e chamar os Governos à responsabilidade.
Sim, o coronavírus fez as Bolsas caírem a pique nas últimas semanas. Sim, os sempre temidos índices de volatilidade estão nas nuvens. Sim, tudo nos faz lembrar aquela hidra de mil cabeças. E sim, a economia mundial entrou num terreno inóspito e terá que esperar meses para ver o alcance real do golpe em toda a sua extensão. Mas estamos perante algo diferente, e ainda veremos se é mais ou menos grave: nenhuma recessão (que já é o cenário-base de todos na Europa, incluindo Bruxelas) é igual à anterior.
No entanto, se compararmos o que se vive ao choque de então, a Grande Recessão de 2008 foi, acima de tudo, a explosão de uma bolha e o colapso de um sector bancário hiper-atrofiado e pouco regulado, que desencadeou um pânico geral e abalou o consumo.
Já esta é uma crise híbrida. “No início, quando o coronavírus começou a golpear a China, gerou-se um impacto muito específico de oferta sobre a cadeia de suprimentos”, afirma Ángel Talavera, chefe de análise da Oxford Economics para a Europa. Mas a sua chega ao Velho Continente, por outro lado, “elevou o cenário a uma outra magnitude: agora é também um choque de demanda muito forte”. Ao contrário do que sucedeu há longa década atrás, como repetem actualmente todos os grandes institutos de análise, os bancos estão agora mais controlados e capitalizados. Com isso, o risco de contágio ao mundo financeiro é menor. “Mas cuidado: se isso acontecer, seria de facto a mãe de todas as batalhas”, adverte José Juan Ruiz, ex-economista-chefe do Banco Inter-americano de Desenvolvimento (BID).
Alguns economistas, como Kenneth Rogoff e o próprio Ruiz, veem hoje vestígios da crise dos anos setenta, quando o embargo petrolífero dos países do Golfo quadruplicou o preço do barril e fez “tilt” na sala de máquinas das economias ocidentais
O ocaso acelerou, a noite caiu cedo demais sobre a economia e o mundo navega e navegará durante semanas praticamente sem pontos de referência. Há três meses, a grande preocupação global era a guerra comercial entre Estados Unidos e China, mas hoje ninguém se lembra disso já: cinco letras (Covid) e dois números (19) monopolizam tudo.
Alguns economistas, como Kenneth Rogoff e o próprio Ruiz, veem hoje vestígios da crise dos anos setenta, quando o embargo petrolífero dos países do Golfo quadruplicou o preço do barril e fez “tilt” na sala de máquinas das economias ocidentais.
Outros, como Joan Roses, responsável pelo Departamento de História Económica da London School of Economis, veem ―com todas as precauções devidas― mais semelhanças com o crash de 1929. “Como agora, houve uma interrupção da produção, a Bolsa caiu e acabou por haver excesso de oferta.
A lição a aprender com essa época é simples: se empobrece o seu vizinho, acaba se por se empobrecer a si também”, diz Roses por telefone. “A incerteza sobre a magnitude da crise detonada pelo coronavírus não exime os Governos: na verdade, obriga-os a lançar mão, preferivelmente de maneira concertada, do arsenal de instrumentos de políticas contracíclicas”, afirma Juan Carlos Moreno Brid, da Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM).
“Não há sincronização, e isto, como historiador económico, é algo nunca vi”, diz Moreno Brid. Esse factor complica a saída. “Pode prolongar a sua duração, cria problemas adicionais sobre o comércio e indica que precisamos de coordenação internacional: não há forma de agir isoladamente”
Impacto atrás de impacto
Uma das grandes diferenças desta crise é que o seu impacto é sequencial: como se fosse um tsunami, o vírus golpeou primeiro a China, depois chegou ao Irão e à Coreia do Sul, e agora abala a Itália e o resto da Europa ocidental, já oficialmente transformada no epicentro da epidemia, preparando-se para atingir em força os Estados Unidos e o Brasil. “Não há sincronização, e isto, como historiador económico, é algo nunca vi”, diz Moreno Brid.
Esse factor complica a saída. “Pode prolongar a sua duração, cria problemas adicionais sobre o comércio e indica que precisamos de coordenação internacional: não há forma de agir isoladamente.” Embora o Covid-19 até agora tenha sido especialmente virulento com as sete grandes potências económicas mundiais, como aponta Paul Donovan, economista-chefe do banco de investimentos suíço UBS, continuará a ‘deixar no tapete’ “diferentes países, de maneiras diversas e em distintos momentos”.
Para já, há algumas ―poucas― coisas claras a essa altura. As previsões anteriores têm pouca importância desde o momento em que o fenómeno, que começou como ‘só mais outra gripe’ aos olhos do Ocidente, transformou-se em algo muito mais sério. “Todas [as previsões] estão desfasadas. Conferir números à crise é arriscado, pois em poucos dias já estarão obsoletos. Com o atraso de dados que existe, enquanto não tivermos um número de todo o mês de Março que nos sirva de guia, será quase como lançar cartas de tarot…”, reconhece Talavera.
“As circunstâncias mudam tão rápido que é impossível confiar em qualquer previsão”, completa, diz David Wilcox, director de pesquisas do Federal Reserve (banco centra dos EUA) até 2018 e um dos assessores mais próximos dos três últimos presidentes da instituição. “Para onde vamos?”, questionava há poucos dias Claudio Borio, chefe do departamento Monetário e Económico do BIS, o coordenador dos bancos centrais. Hoje “só existe uma coisa clara: os mercados financeiros continuarão dançando ao ritmo das notícias sobre o coronavírus e da resposta das autoridades.”
Toda medida de contenção da epidemia, especialmente se for da envergadura das aplicadas nos últimos dias, implica provocar um curto-circuito na economia durante um tempo.
Toda medida de contenção da epidemia, especialmente se for da envergadura das aplicadas nos últimos dias, implica provocar um curto-circuito na economia durante um tempo. E aí é óbvio o lógico o preço a pagar: a saúde é a prioridade.
E é também uma autêntica prova de resistência para o crescimento. Haverá impacto, será forte e (ao que parece) transitório. Como uma catástrofe natural. Durará o que o vírus durar, entre dois e cinco meses, segundo os cálculos das autoridades sanitárias espanholas. E aí, sim, será o momento de levantar os tapetes e ver o que há debaixo; de contabilizar os prejuízos, presumivelmente profundos.
Enquanto isso, os economistas parecem resignados a um de seus piores pesadelos: ir tateando o terreno por um período muito maior do que gostariam. E isso, bem, isso se parece muito com aquele obscuro setembro de 2008.
Haverá impacto, será forte e transitório. Como uma catástrofe natural. Durará o que o vírus durar, entre dois e cinco meses. E aí, sim, será o momento de levantar os tapetes e ver o que há debaixo
Uma árdua batalha que apanhou o mundo sem defesas
Manter o fantasma de 2008 longe da vista pode ser, de certa forma, um alívio. E em parte é. No entanto, como afirmam Richard Baldwin e Beatrice Weder di Mauro, do Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais, em Genebra, o vírus está está a ser especialmente prejudicial à nata da economia (“a lista das 10 nações mais atingidas é quase idêntica à dos 10 países com maior PIB do mundo, deixando claro que [o covid-19] tem potencial para fazer a economia mundial sair dos eixos”, escrevem).
Sabe-se que o golpe será duro, mas temporário, embora sempre com a dúvida pairando sobre sua duração
E, nas grandes mesas de análise, um naufrágio como o daquele ano não está em discussão (aqui, leitor, aplique todas as exceções que julgar oportunas). Sabe-se que o golpe será duro, mas temporário, embora sempre com a dúvida pairando sobre sua duração: começou-se falando de semanas, depois de meses e, após sua chegada à Europa, o debate é sobre os trimestres de estancamento da actividade económica.
Como escrevia na passada sexta-feira o professor Gregory Mankiw, da Universidade Harvard, “há momentos para se preocupar com a crescente dívida pública, mas este não é um deles”
Descontada a recessão, quanto mais tempo durar o estado de excepção, maior será a sua virulência.
À segunda vista, no entanto, o temor é outro: praticamente não há pontos de ancoragem nem precedentes a recorrer na hora de elaborar uma resposta de política económica.
A pólvora monetária está molhada, com as taxas de juros no chão, e exige uma importante dose de criatividade. O plano fiscal, sobrecarregado pelos passivos acumulados, exige uma reformulação completa das directrizes, ao menos na Europa.
Ainda assim, como escrevia na passada sexta-feira o professor Gregory Mankiw, da Universidade Harvard, “há momentos para se preocupar com a crescente dívida pública, mas este não é um deles.”
A expansão, além disso, chega desacelerada e numa fase já muito madura: quase 130 meses consecutivos de crescimento nos EUA, cerca de quatro vezes acima da média histórica. Mais um ponto de fragilidade.
Jornal El Pais