Nas últimas semanas, todos temos vindo a receber centenas de mensagens no WhatsApp que tentam mostrar uma realidade diferente da que conhecemos sobre o covid-19 no nosso dia a dia.
Muitas, quase todas, são mensagens de voz gravadas, geralmente invocando algum conhecimento particular da situação médica (as vozes apresentam-se como profissionais de saúde ou citam pessoas que o são). Na maioria, os relatos são catastróficos: há vários casos ocultados, a informação real está a ser escondida, os aparelhos respiratórios dos hospitais só são usados com doentes mais novos, entre outras informações falsas, e facilmente desmentidas como estas, ou que tentam antecipar um futuro (possível, mas ainda não verificado) à luz do que acontece, por exemplo, em Itália ou Espanha.
Depois, há imagens contendo conselhos de saúde de fontes não oficiais. E também há pseudo relatórios e relatos pessoais de alguém supostamente com acesso a realidades que são, na sua maioria, invocadoras de pânico geral. E claro, há as teorias da conspiração: umas a apontar para a China e as outras… bem, quase todas apontam para a China, é certo.
Impossível monitorizar
O que é certo, e já está comprovado, é que redes sociais e, especialmente o WhatsApp estão a ter um impacto brutal na nossa percepção do que é o covid-19 e isso terá consequências que são, na altura em que vivemos, inimagináveis a vários níveis.
Como explica o Poynter Institute, “uma vez que não se pode monitorizar e identificar directamente as mensagens encriptadas da plataforma, as organizações de verificação de factos em todo o mundo estão a pedir aos leitores que enviem as mensagens suspeitas para as suas contas institucionais no WhatsApp para que as possam verificar. Trata-se de uma solução imperfeita para um problema crescente”.
Não é possível, contudo, saber exatamente a quantas pessoas chegou cada uma destas mensagens nem quem as criou ou difundiu originalmente. Por isso, é também impossível avaliar a razão por que estão a ser difundidas.
Não há muito a fazer, perante estas mensagens. O próprio WhatsApp recomenda, como primeira regra, nas suas “dicas para ajudar a evitar a disseminação de boatos e notícias falsas”, que se desconfie de mensagens reencaminhadas.
O WhatsApp, que é uma empresa do grupo Facebook, não tem qualquer mecanismo de identificação de fake news. Ao contrário do Facebook, o WhatsApp não dispõe de “moderadores de conteúdo”, nem equipas de fact-cheking a analisar, em tempo real, as mensagens difundidas
O WhatsApp, que é uma empresa do grupo Facebook, não tem qualquer mecanismo de identificação de fake news. Ao contrário do Facebook, o WhatsApp não dispõe de “moderadores de conteúdo”, nem equipas de fact-cheking a analisar, em tempo real, as mensagens difundidas. A pesquisa do MediaLab do ISCTE verificou que muitas das mensagens que circulam no WhatsApp foram usadas ao mesmo tempo, em videos, no Facebook, que rapidamente foram retirados.
E é por isso que, esta que foi uma das redes mais utilizadas para espalhar falsas notícias, acaba de anunciar duas iniciativas de apoio à luta global contra a pandemia do novo coronavírus: o lançamento mundial do WHO Health Alert brings COVID-19 facts to billions via WhatsApp, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). O Centro de Informação online tem dados em português sobre o Brasil.
O Centro de Informação fornece ainda um guia simples para trabalhadores de saúde, educadores, líderes comunitários, sociedade civil organizada, governos locais e empresários relacionados às comunicações via WhatsApp. A plataforma também fornecerá dicas gerais e fontes de informação confiáveis para os usuários do aplicativo em todo o mundo com o objectivo de reduzir boatos e conectar pessoas com fontes fidedignas de informação.
Factos
De acordo com dados divulgados na plataforma de análise de social medial Sprinklr, havia, mais de 19 milhões de menções relacionadas ao covid-19 em social media, blogs e sites de notícias on-line em todo o mundo em 11 de março. Para o contexto, as menções do presidente dos EUA, Donald Trump, no mesmo dia chegaram em cerca de 4 milhões. Muitas das menções ao covid-19 terão vindo de fontes legítimas, mas, dada a novidade da doença e a natureza em rápida mudança das notícias relacionadas, é seguro assumir que uma grande parte estava imprecisa ou desactualizada. A actual batalha contra a desinformação na maioria das plataformas de social media concentra-se principalmente nos chamados “maus actores” que deliberadamente espalham mentiras e informações enganosas, às vezes para ganho político.
Plataformas como o Twitter e o Facebook (que detém o WatsApp) também estavam entre as primeiras fontes de informações sobre o covid-19. Mas como cidadãos comuns, celebridades, políticos e outras pessoas usam plataformas sociais para compartilhar as suas experiências com coronavírus, informações importantes sobre saúde e segurança são facilmente abafadas. Muitos usuários podem ser bem-intencionados, mas desinformados, e podem espalhar informações imprecisas sem intenção. Como resultado, as plataformas de social media adoptaram medidas sem precedentes para impedir a disseminação de informações erróneas relacionadas com o coronavírus.
Assim, o Facebook forneceu à Organização Mundial da Saúde (OMS) os seus espaços anúncios gratuitos e bloqueou anúncios de marcas que podem estar a explorar a situação, alegando que os seus produtos podem curar o vírus, por exemplo. Isso além do aumento da verificação de factos e de um pop-up que direcciona os usuários que pesquisam coronavírus directamente ao site da OMS ou a uma autoridade de saúde local. O Twitter também o fez, e direcciona os usuários para sites de autoridades locais de saúde, como os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) nos EUA.

Mortes, Bolsonaro e revenge porn
Sendo um serviço online de comunicação, privado, mas com mais de dois mil milhões de utilizadores no mundo – gratuito e seguro, dada a encriptação de conteúdos -, o WhatsApp tornou-se, nos últimos anos, um dos meios mais atingidos pela desinformação.
Em 2018, 29 pessoas foram mortas na Índia, depois de vários grupos de utilizadores da rede terem montado uma “caça” a alegados gangues de rapto de crianças.
Nesse mesmo ano, uma investigação do jornal brasileiro Folha de S. Paulo revelava como um grupo de empresários financiou uma campanha de apoio a Jair Bolsonaro, que pode ter sido decisiva para a vitória do presidente do Brasil nas últimas eleições.
“Até quatro de cada dez mensagens virais partilhadas nos grupos de WhatsApp durante as eleições presidenciais do ano passado no Brasil continham informações consideradas falsas pelos verificadores de factos”
“Até quatro de cada dez mensagens virais partilhadas nos grupos de WhatsApp durante as eleições presidenciais do ano passado no Brasil continham informações consideradas falsas pelos verificadores de factos”, explicou a investigadora Cristina Tardáguila que liderou o estudo da Swansea University de Gales sobre a influência das mentiras difundidas na rede social nas presidenciais brasileiras.
O próprio responsável do WhatsApp por políticas públicas, Ben Supple, admitiu que a desinformação teve um papel importante na decisão política dos brasileiros: “Durante as eleições brasileiras do ano passado existiram empresas fornecedoras de mensagens em massa que violaram os nossos termos para chegar a um grande número de pessoas.”
Para além da desinformação, destaca-se o papel relevante que o abuso de imagem íntima e o revenge porn (videos postos a circular, verdadeiros ou montados, que revelam a intimidade sexual) têm vindo a ganhar na plataforma, aproveitando a inexistência de moderadores e a incapacidade forense de identificar quem colocou o conteúdo em circulação. Quando a vítima finalmente descobre que foi alvo deste crime, solicita a retirada do conteúdo das plataformas e dos sites, mas o WhatsApp é uma espécie de território livre de regras, onde tudo pode ser partilhado, sem qualquer tipo de controlo, a uma velocidade muitas vezes superior à de outras plataformas. O conteúdo, esse, ficará para sempre nas drives e nas clouds pessoais dos utilizadores, regressando ciclicamente para atormentar as vítimas.
No ano passado, em Espanha, Verónica, de 30 anos, suicidou-se, na sequência da divulgação de um vídeo íntimo seu. Em Portugal o número de denúncias ao Ministério Público tem vindo a aumentar de ano para ano.
Inês Narciso, investigadora digital que já ajudou algumas das vítimas deste fenómeno a compreender a dimensão do problema e a sinalizar o conteúdo nas diversas plataformas, explica: “A batalha contra o WhatsApp é infelizmente uma batalha perdida e é muito difícil dizer nos olhos de alguém que viu a sua vida arruinada que não há grande coisa a fazer a não ser esperar que caia no esquecimento.”
A mesma investigadora destaca que as vítimas não são apenas quem já inconscientemente se deixou filmar na intimidade: “Já ajudei uma amiga que nem sequer estava no vídeo partilhado, mas foi colocada uma imagem da cara dela insinuando o contrário, provavelmente por vingança pessoal. Isto pode acontecer-me a mim, a si, a qualquer pessoa. E com a chegada das deep fakes, temos de nos perguntar a nós próprios se vamos permitir que seja assim tão fácil arrasar completamente com a vida de alguém, sem consequências.”
“A batalha contra o WhatsApp é infelizmente uma batalha perdida e é muito difícil dizer nos olhos de alguém que viu a sua vida arruinada que não há grande coisa a fazer a não ser esperar que caia no esquecimento”
Agora, quando se vive uma crise de saúde tão severa como esta, a utilização que fazemos das redes sociais tem consequências. “O sentimento de impotência perante a pandemia pode levar-nos a querer fazer algo para ajudar e muitas vezes essa pode ser a motivação para passar uma mensagem a outra pessoa no WhatsApp. O que importa que as pessoas percebam é que passar mensagens que dizem que ‘tudo está descontrolado’, que ‘há mortos’, que ‘tudo vai fechar’ ou outras semelhantes nada ajuda nem o próprio nem ninguém”, alerta Gustavo Cardoso.
Por isso, a melhor forma de contrariar a desinformação são atitudes individuais de quem recebe as mensagens: ter cautela e espírito crítico, propõe Gustavo Cardoso. “Nesta pandemia a distância social nas redes sociais tem também de ser uma prioridade. Devemos manter uma distância mental das mensagens que recebemos. Se parámos de cumprimentar com apertos de mão e beijos quem conhecemos, porque haveremos de partilhar mensagens que nos chegam mesmo quando são de pessoas conhecidas?”