No início da década a nível interno, a aviação civil era responsável pelo transporte de perto de 700 mil passageiros. Até 2018, o número quase duplicou e, só no primeiro semestre de 2019, registou-se um aumento de 17%. Será 2020 o ano da descolagem?
Ao longo dos últimos anos, um dos debates que ‘aquecia’ qualquer conversa no espaço público era o da liberalização do espaço aéreo e de como a aviação civil poderia melhorar na oferta dos serviços, dos preços e da pontualidade, essencialmente.
Era uma discussão antiga, essa, que vinha já desde o início do século, quando a legislação entreabriu a porta para uma possibilidade que, no entanto só seria consumada há pouco mais de dois anos quando o Executivo tomou pulso à iniciativa e começou a forçar o sector a abrir-se a novos players promovendo a concorrência de que qualquer área de actividade necessita para se ir aperfeiçoando.
Na forma e no serviço prestado ao seu consumidor, neste caso, os passageiros mas também no seu contributo aos sectores económicos, que dele dependem, como o turismo, por exemplo.
Ventos de mudança
Quando os chefes de Estado africanos assinaram o tratado de Abuja, segundo o qual, até ao dia 31 de Dezembro de 2015, somente os aeroportos certificados deveriam receber tráfego internacional, a ideia era simples: concentrar o tráfego, melhorar as infra-estruturas e potenciar economicamente algumas regiões. Ao nível da SADC, estimava-se que a liberalização aí iniciada influenciasse toda a região. Da Tanzânia ao Malawi, do Zimbabué a Moçambique, claro.
Em 2018, mais de metade de toda a população do planeta (4 mil milhões) andou de avião, um número que se prevê que chegue aos 7,2 mil milhões até 2035
Mais tarde, com a aprovação, na Assembleia da República (AR), “em definitivo e por consenso”, da proposta de revisão da Lei de Aviação Civil, a aviação civil ganhava a base legislativa que a fez começar a voar. Depois, o IACM (Instituto de Aviação Civil de Moçambique) ganhava novas asas, e tornava-se a entidade reguladora do espaço aéreo nacional. Não tardou o anúncio da abertura de concursos para dar outras cores, de novas companhias, aos céus de Moçambique.
A primeira a aterrar, nesta nova fase da aviação civil, foi a Fastjet, uma operadora pan-africana de voos de baixo custo (detida pela Solenta Aviation, desde 2018) e que começou por ligar as cidades de Maputo e Beira, Tete e Nampula.
Até aí, só a estatal Linhas Aéreas de Moçambique (LAM) realizava de forma consistente a ligação doméstica a todas as províncias do país, mas os problemas de gestão e de falta de aviões que provocavam atrasos e cancelamentos de voos trouxeram um desgaste à reputação da LAM, algo que tem vindo a resolver-se na actual gestão (ver entrevista do director-geral na página 28).
Seguiu-se a Ethiopian Moçambique, no segundo semestre do ano passado. A operadora moçambicana detida pela gigante aeronáutica etíope trouxe ao céu de Moçambique um dinamismo concorrencial que se reflectiu essencialmente nos preços dos bilhetes (baixaram, em média, entre 7% e 10%), e na diversidade dos voos.
Mas claro que nem tudo é um mar (neste caso um ar) de rosas. “Internamente, há a melhoria dos preços, dos serviços, novas rotas, menos tempo de viagem e de retenção nos aeroportos e escalas que já reduziram significativamente” diz o comandante João Abreu, PCA do Instituto de Aviação Civil.
Por outro lado, prossegue, “as companhias também beneficiam com novas rotas, mais e melhor tráfego aéreo e a possibilidade de parcerias como a da Solenta com a LAM. Depois, a partilha de códigos já acontece e traz companhias como a Air France ou a KLM até nós. Mais serviços aéreos para os grandes projectos e a descentralização dos hubs para que cresça o peso do sector na economia nacional são o futuro da aviação”.
O ministro dos Transportes e Comunicações também enaltece o trabalho em curso de reguladores e players do mercado “no quadro da liberalização do espaço aéreo, da certificação dos aeroportos de Maputo e Nacala e de outras reformas em curso”, dizia, à margem da Conferência Internacional de Transpor-te Aéreo, Turismo e Carga Aérea (CITA), realizada em Julho de 2018, em Maputo.
Já o primeiro-ministro (PM), Carlos Agostinho do Rosário, no seu discurso de abertura da Conferência, repisava o desafio “da aplicação de tarifas competitivas, porque só assim se pode assegurar que o transporte aéreo seja mais acessível para os cidadãos e um factor indutor do desenvolvimento do turismo, e da economia do país e da região”.
O director geral da SATA Açores, Gavin Eccles, concorda com a estratégia delineada: “Planeamento e promoção devem funcionar em conjunto. Temos de construir aeroportos sustentáveis, perceber como podemos trabalhar em conjunto para desenvolver os destinos e mudar a percepção dos consumidores. Aumentar as rotas é captar turistas, e há que conciliar temperatura e preço, apostar no mercado dos charters. Cabo Verde é um bom exemplo disso. Até porque construímos hotéis e eles são suportados pelo transporte aéreo. A ordem é esta, não o contrário.
Em Moçambique, muitas das questões como os vistos, a segurança, o conflito político, estão resolvidos, o que falta então?”, questionava, num dos painéis da Conferência.
A este respeito, o líder do IACM, anunciou estar em curso “a produção de um Masterplan a dez anos que vai envolver todos os parceiros do conselho aeronáutico”.
De casa até à praia
Apesar da mudança em curso, os turistas que entram em Moçambique pela via aérea para usufruir das praias, parques nacionais e oportunidades de negócio ainda estão aquém do desejável e do potencial que o país oferece.
Um paradoxo num continente que viu o número de entradas de turistas internacionais duplicar, entre 1995 e 2016, e a receita mais do que triplicar, gerando 47 mil milhões de dólares em 2016.
Ainda assim, o continente responde por apenas 3% do movimento global de viajantes de avião e por isso é que este deverá ser um esforço regional.
Aviação e turismo estão directamente relacionadas, como é fácil imaginar. E o seu crescimento é, de resto, assinalável. Cerca de 3,9% em 2018, representando 10,4% do PIB mundial e contribuindo com uma receita recorde de 8,8 biliões de dólares, gerando 319 milhões de empregos e, pelo oitavo ano consecutivo, ficando acima da taxa de crescimento do PIB mundial (3,2%).
Os números fazem parte da pesquisa anual do World Travel & Tourism Council (WTTC) sobre o impacto económico de um sector responsável por um em cada cinco novos postos de trabalho criados no mundo e que voa à frente da Saúde (+ 3,1%), Tecnologias da Informação (+ 1,7%) e Serviços Financeiros (+ 1,7%).
Outro dado interessante tem que ver com o facto de 71,2% dos gastos em turismo, a nível global, serem provenientes de turistas nacionais, o que demonstra a importância do turismo doméstico.

Mas para percebermos o peso da aviação civil no turismo, ficamos também a perceber que, em 2018, o sector da aviação contribuiu com 4 biliões de dólares para a economia mundial valendo 4% do PIB global, cerca de 300 vezes mais do que o que é gerado em toda a economia moçambicana num só ano.
E quando já se fala do que aí vem na próxima década, com conceitos como a digitalização na aviação e do próprio turismo, tendo por base a redução da pegada ambiental, melhoria da segurança e o aperfeiçoamento da economia de custos e tempo, percebe-se que, em Moçambique, é preciso entrar em velocidade de cruzeiro. Para não se perder o comboio, ou o voo, no caso.
O mercado nacional
No país, o número de passageiros aéreos ressentiu-se da crise dos últimos anos. Como todos os outros sectores de actividade, aliás. E dos perto de 2 milhões (provenientes de voos domésticos, regionais e intercontinentais) que voaram em 2014 foi sempre a descer até aos 1,5 milhões registados no final de 2016. Só voltaria a aumentar consistentemente desde aí, recuperando até aos 1,9 milhões do ano passado, de acordo com dados do Governo.
O tráfego doméstico, onde a LAM continua a predominar (companhia de bandeira transportou 524,9 mil passageiros no ano passado) teve uma quota de mais de 62% do total de passageiros transportados em todos os segmentos. Já os voos regionais, onde o predomínio vai para a South African Airways, são responsáveis por 30,5% de todo o mercado, tendo sido transportados 586 mil passageiros no ano passado.
Por fim, os voos intercontinentais, com a TAP à cabeça, valem 6,4% do mercado da aviação civil, tendo movimentado 124,3 mil passageiros ao longo do ano.
Foram criadas cinco geografias principais servidas por três aeroportos internacionais: Maputo, Beira e Nacala, onde será criado o grande hub logístico que vai alimentar Cabo Delgado
No quadro geral, o tráfego de passageiros nos aeroportos de Moçambique aumentou significativamente na última década e meia, (829 mil em 2002), contribuindo hoje, de forma directa e indirecta, com 300 milhões de dólares (2,3%) para o PIB nacional.
Mas, apesar do desenvolvimento dos dois últimos anos, o tráfego aéreo nacional tem crescido abaixo do PIB, algo que contrasta com o que acontece no Quénia (1,44% acima) ou na Tanzânia (mais 1,45%), países vizinhos que foram submetidos a uma substancial liberalização do mercado da aviação civil. “Fazemos muitas referências aos países vizinhos mas, a única dificuldade que temos, é não conseguirmos trazer para as nossas contas o que o turismo produz.
Em 1974 tínhamos 600 mil turistas. De lá para cá aumentámos para os 2,8 milhões de 2018 mas ainda queremos mais”, diz Silva Dunduro, o ministro da Cultura.
No entanto, há previsões optimistas no horizonte, estimando-se que o número de passageiros em Moçambique aumente para aproximadamente 10 milhões até 2027, catapultando para o triplo a contribuição do sector do turismo no PIB.
A previsão surge plasmada na visão estratégica do Governo para a aviação civil, em que se reconhece o papel dos transportes como “catalisadores do desenvolvimento económico” e se identifica claramente como a aviação civil deve suportar o crescimento económico sustentável através da melhoria do seu alinhamento com as estratégias do turismo, agricultura, mineração, indústria e mega-projectos, através de mais e melhores mecanismos regulamentares, facilitando a negociação de acordos dentro da SADC e a nível internacional.
Com esta base, a estratégia enuncia a criação de cinco geografias principais servidas por três aeroportos internacionais: Maputo para eventos e negócios, Gorongosa para o turismo cinegético (caça) e científico servida pelo aeroporto da Beira.
Já a Ilha de Moçambique (turismo histórico-cultural), Niassa e Norte como zonas de aventura e o vector do desenvolvimento associado aos mega-projectos do gás natural serão abrangidos pelo eixo Nacala-Pemba, tendo por base o novo e moderno aeroporto de Nacala que será o grande hub logístico do Norte. Será ali onde se congregam, as infra-estruturas aeroportuárias, os caminhos-de-ferro e o Porto de Nacala que alimentarão assim toda a zona Norte, até à cidade do gás de Afungi.
Reposicionamento em curso
Este é, até aos dias de hoje, o maior desafio que a aviação civil moçambicana enfrenta: atender à crescente demanda de transporte de equipamentos e de quadros empregues na construção das plataformas para a exploração do gás da Bacia do Rovuma.
Por isso mesmo, “o problema da aviação civil no país deve ser partilhado pelo sector público e privado”, diz o vice-presidente da CTA, Castigo Nhamane. “É imperioso que continuem as reformas legislativas do sector, em particular, o pacote fiscal. Há uma necessidade de se aplicarem isenções de direitos aduaneiros na importação de aeronaves e outros equipamentos, pois só desta forma estaremos à altura de responder à demanda dos mega-projectos.”
João Carlos Pó Jorge, director geral da LAM, coloca a tónica na liberalização como “oportunidade, mas também um grande desafio.” E explica: “Precisamos de maior formação e de uma correcta percepção do destino e dos níveis de qualidade do que Moçambique tem para oferecer. Temos aeronaves suficientes para o que aí vem? Se não, há que colocar os planos em marcha, e já o estamos a fazer através de parcerias”, enuncia. Caso da que já existe com a TAAG (para Angola e São Paulo, em Setembro do ano que vem) tendo já sido anunciada, na semana passada, uma outra, com a TAP, para retomar os voos para a Europa já nos próximos meses de 2020.
A evolução do mercado
Os mega-projectos vão requerer mão-de-obra deslocalizada, matérias-primas, perecíveis, e fluidez de movimentação. Prevê-se que, no pico da obra da base logística para a exploração de gás, em Cabo Delgado, haverá 20 mil pessoas de vários pontos do mundo, em simultâneo. “Há um ano estivemos a reflectir sobre os desafios do transporte aéreo e concluí-mos que não estávamos preparados. Agora estamos. Quando digo nós, não sou só eu, ou a LAM, mas um conjunto de instituições. A indústria do petróleo vem, e de repente, impõe uma explosão em tudo. O volume é enorme e o nível de exigência também, especialmente para a nossa indústria. Teremos de nos associar com parceiros aos quais não conseguimos chegar sozinhos. As certificações nacionais e internacionais são fundamentais, como as auditorias internas de processo sem as quais não seremos capazes de responder e servir os mega–projectos”, diz o director-geral da LAM.
“Actualmente servimos todo o país, estamos a olhar para Harare e Cape Town, por causa também do petróleo. Temos pedidos de empresas, para criar charters entre Joanesburgo e o Norte. Com isto, estamos a dinamizar também o turismo. Assinámos com a GSA, que já nos trouxe a Thompsons e outros operadores turísticos para verem a oferta, em termos de natureza. Mas precisamos de melhorar as infra-estruturas”, diz.
E até dá um exemplo da dimensão dos desafios que aí vêm: “Fomos contactados por uma das empresas dos mega-projectos que vai precisar de transportar 5 mil ovos e galinhas por dia. Será uma empresa do extremo Oriente. Como fazê-lo com qualidade? Os desafios de passageiros e carga serão enormes. Em Afungi estarão milhares de pessoas da Indonésia, Filipinas ou Malásia. A pontualidade é essencial e foi essa melhoria que permitiu com que até estejamos acima da média no cumprimento de horários (85%, enquanto que os outros operadores estão nos 80%)”, refere.
“Há um ano estivemos a reflectir sobre os desafios do transporte aéreo e concluí-mos que não estávamos preparados. Agora estamos
Apesar de tudo, e voltando ao ponto de partida, o crescimento que se espera para o mercado será impulsionado pelos mega–projectos mas será o turismo a colher os frutos desse grande impulso, dando-lhe um cunho de sustentabilidade a médio e longo prazo. “Iremos crescer economicamente como país, a criar serviços para estas grandes obras, gerando turismo interno em quantidade e qualidade. Está a fazer-se um esforço ao nível das infra-estruturas, como em Nacala, o melhor aeroporto da região em termos técnicos, mas é preciso mais hospitais, estradas e hotéis para que o turismo possa ser de facto a chave do desenvolvimento”, diz João Carlos Pó Jorge.
Para já, o previsível crescimento da procura parece aguçar a vontade de gigantes internacionais começarem a incluir Maputo nos seus destinos.
Ainda recentemente, a Aeroportos de Moçambique (AdM) anunciou a vontade de atrair a Emirates para iniciar os voos para o país, à luz de um entendimento com a DNATA, empresa que presta serviços de check in e manuseamento de cargas (handling) no aeroporto do Dubai.
Nesse sentido, o Governo, anunciou a assinatura de um contrato de cedência das suas acções à DNATA, que vai ser o player responsável por “atrair novas companhias internacionais” para o espaço aéreo nacional. A informação foi avançada pelo PCA da AdM, Emanuel Chaves. “Decidimos que devemos atrair um parceiro estratégico para ser um elemento de atracção de companhias aéreas para o país. Estamos, neste momento, a negociar com a DNATA para fecharmos o contrato de cedência das nossas acções no MAHS para que possam participar da estratégia de desenvolver novas rotas. A Emirates pode colocar o país na rota internacional.”
Assim, propulsionado por um crescimento económico alavancado na exploração de gás natural, a aviação civil de Moçambique parece querer deixar para trás muitas décadas de letargia, e estar finalmente pronta para se fazer à pista e descolar. Até porque, por todas as razões, o futuro está mesmo no ar.